Sudão, Março de 1993. Uma criança sem identidade do sexo masculino
arrasta-se em direcção a um campo de alimentação montado pelas Nações
Unidas. Um abutre espera pacientemente que a Mãe Natureza lhe sirva o
almoço.
O fotógrafo sul-africano Kevin Carter também está à
espera. O que seria apenas mais uma entre as muitas dezenas de fotos que
já tirara naquele dia, transforma-se numaimagem memorável quando o animal surge e ocupa o mesmo enquadramento. «Se ao menos o abutre abrisse as asas…» – pensou.
Vinte
minutos passam e o abutre não colabora. O fotógrafo acaba por desistir e
tira várias fotos do menino e do animal, uma das quais ficará
imortalizada na capa de 26 de Março do New York Times como «o símbolo da fome e do horror em África».
Depois
de tirar as fotografias, Carter afasta o abutre e senta-se à sombra de
uma árvore a fumar um cigarro, enquanto a criança, esgotada e faminta,
retoma a sua lenta e penosa marcha pela sobrevivência.
Até há pouco tempo desconhecia-se o destino do rapaz. Uma investigação dos jornalistas do El Mundo
revelou finalmente o destino de Kong Nyong – assim se chamava.
Sobreviveu à fome, mas 13 anos depois de aparecer na foto acabaria por morrer, atacado por febres.
14 meses depois, a 23 de Maio de 1994, Kevin Carter recebe o Prémio Pulitzer
por causa desta imagem – às aclamações iniciais, porém, sucedem-se as
críticas. Alguns jornalistas questionam a autenticidade da foto,
sugerindo que esta fora «encenada». Outros colocam em causa a ética do fotógrafo: «Um
homem ajustando as lentes até conseguir o quadro perfeito do sofrimento
da criança bem pode ser visto como um predador, outro abutre em cena», escreve o St.Petersburg Florida Times.
A 27 de Julho desse ano, dois meses depois de ganhar o Pulitzer e ser transformado numa das «sensações do momento» em Nova Iorque, Kevin Carter estaciona a sua Nissan «pickup»
vermelha à beira do rio Braamfonteinspruit, um pequeno curso de água
nos arredores de Johannesburg onde costumava brincar em criança. Liga
uma mangueira de jardim ao tubo de escape, fecha-se no carro, escreve um
bilhete, coloca os «phones» nos ouvidos, liga o motor e morre por inalação de monóxido de carbono. Tinha 33 anos.
O suicídio de Kevin Carter é contado entre os fotojornalistas como um «aviso»
aos novatos, servindo como exemplo dos perigos de se fotografar
demasiado perto as misérias humanas. Dan Krauss, realizador de um
documentário da HBO sobre o fotógrafo, «The Death of Kevin Carter: Casualty of the Bang Bang Club», vê nessa foto o momento em que Kevin incorporou, na criança moribunda, «o sofrimento de África» e, no abutre, «o seu próprio rosto».
Carter sempre viveu o seu percurso profissional vivendo o típico
dilema dos fotojornalistas: testemunhar ou ajudar. Na maior parte das
vezes, diz o próprio Carter, «estou a fazer um zoom sobre um tipo
morto com uma piscina de sangue à volta a misturar-se na areia. O rosto
está ligeiramente cinzento. E tenho de pensar visualmente. Alguma coisa
grita dentro de mim ‘Meu Deus!’, mas estou a trabalhar. Lido com o resto
depois.»
A carreira é feita à sombra da violência na África
do Sul, na luta dos negros (e alguns brancos) contra o Apartheid, nas
represálias de polícias e bandidos, gangs e justiceiros, na
guerra entre zulus e o ANC, nas atrocidades cometidas por todos. Por ter
passado tanto tempo a documentar os horrores sul-africanos, o grupo de
fotógrafos em que estava incluído Kevin Carter e o seu amigo de
infância, Ken Oosterbrock, passou a ser conhecido como «Bang Bang Club».
Quando
Carter parte para o sul do Sudão, em 1993, tenciona fazer uma
foto-reportagem com as tropas rebeldes. Em vez disso, mal o avião aterra
e ele desembarca, depara-se com centenas de homens, mulheres e crianças
famintos a dirigir-se em direcção a um campo de alimentação da ONU.
Depois de tirar dezenas de fotografias, afasta-se alguns metros em direcção ao mato para «fugir à visão de todas aquelas pessoas a morrer de fome», segundo recorda o fotógrafo sul-africano de ascendência portuguesa João Silva, que faz parte do «Bang Bang Club» dos tempos da África do Sul e acompanhou Carter no Sudão.
É
Silva quem posteriormente contará o que se passou com Carter quando se
sentou à sombra da árvore depois de tirar a foto da criança: «Acendeu um cigarro, falou com Deuschorou. Depois disso ficou deprimido, dizia que só queria abraçar a filha».
O impacto da foto foi tremendo. O New York Times
recebeu tantas cartas de leitores a querer saber o que tinha acontecido
à criança que se viu forçado a publicar uma nota onde informava «desconhecer o seu destino».The Show Must Go On. O prémio aumenta a auto-confiança de
Carter: editores de revistas em Nova Iorque querem conhecê-lo, as miúdas
começam a interessar-se por aquele tipo sempre vestido de calças de
ganga preta e t-shirt branca, as portas da fama abrem-se de par em par e
ele acaba por ser contratado pela prestigiada agência Sygma.
«A
pressão de estar sempre onde está a acção, o medo de que as suas
fotografias não fossem suficientemente boas, a lucidez existencial ganha
por sobreviver a tanta violência e as drogas que usava para minar essa
lucidez», segundo a interpretação do jornalista Scott MacLeod, do Times, estão na base da «meteórica ascensão e queda» de Kevin Carter, «a prova de que nem todas as tragédias possuem uma dimensão heróica.»
Dois
serviços falhados arrastam-no novamente para a depressão. Na cobertura
da visita de Mitterrand à África do Sul, atrasou-se a enviar as fotos;
quando finalmente chegaram, a Sygma não as publicou por considerar que
não tinham a «qualidade desejável». À segunda oportunidade, um
serviço em Moçambique não deu em nada porque, depois de passar seis dias
no país, Carter perdeu os rolos no Aeroporto e nunca mais os encontrou.
Recordam os amigos que foi na sequência destes dois falhanços – e dos
problemas de dinheiro – que Carter começou a falar abertamente em
suicídio. Muitos colegas aconselharam-no a marcar consulta no Psicólogo.
A
morte em serviço do seu melhor amigo, Ken Oosterbrock, arrasou-o por
completo. Oosterbrock, grande fotógrafo, vencedor como ele de um
Pulitzer, era o seu oposto: «Ken era aquele tipo bem casado e com a
vida organizada, mas Carter era caótico, sempre a trocar de mulher e,
pelo meio, pai de uma criança que não planeara», de acordo com um dos seus colegas dos tempos do «Bang Bang Club».
O bilhete que escreveu antes de morrer:
Estou deprimido, sem telefone, sem dinheiro para pagar a renda, sem dinheiro para ajudar ao sustento da minha criança, sem dinheiro para pagar as dívidas, sem dinheiro! Sou assombrado pelas vívidas memórias de mortes e cadáveres e raiva e dor, de crianças feridas e esfomeadas, de loucos que assassinam alegremente, alguns deles polícias (…). A dor de viver ultrapassa a alegria ao ponto em que esta deixa de existir.
E depois, recordando o amigo falecido:
Vou partir para me juntar ao Ken – se eu tiver essa sorte.
A filha de Carter, Megan, tem uma visão muito diferente da fotografia premiada:
Eu vejo a criança em sofrimento como o meu pai. E o resto do mundo é o abutre.
KEVIN CARTER |
FOTO DE KEVIN CARTER |
Nenhum comentário:
Postar um comentário